Resenha#13 – Garota Exemplar, de Gillian Flynn

Ao escrever essa resenha desejo ressaltar logo de início que li Garota Exemplar em apenas quatro dias. O livro possui 446 páginas e eu trabalho, no entanto, todos os pequenos momentos de descanso eu o lia, porque fiquei totalmente imersa no mundo de Amy e Nick. Este é o poder de Garota Exemplar, conforme você lê mais você quer saber e descobrir como tudo aquilo aconteceu. Aquilo tudo é basicamente a sinopse do livro.

O enredo começa assim: na manhã de seu quinto aniversário de casamento, Amy, a linda e inteligente esposa de Nick Dunne, desaparece de sua casa às margens do Rio Mississippi. Aparentemente trata-se de um crime violento e passagens do diário de Amy revelam uma garota perfeccionista que seria capaz de levar qualquer um ao limite. Pressionado pela polícia e pela opinião pública, Nick desfia uma série interminável de mentiras, meias verdades e comportamentos inapropriados.

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Quanto mais a gente conhece Nick e Amy – em capítulo alternados narrados em primeira pessoa por ambos -, os questionamentos começam a surgir e a embaçarem. Nick parece estranhamente evasivo e despreocupado, seu casamento escondia dezenas de segredos, mas seria ele um assassino? O marido afirma inocência, entretanto, todas as pistas apontam para ele. Se Nick não matou Amy, onde ela está?

Nick narra o presente desde a manhã em que saiu de casa e foi para trabalhar no bar até receber a ligação de um vizinho intrometido. De acordo com a voz do outro lado do telefone, a sua porta estava escancarada e o gato parado na soleira. Ao entrar, Nick encontra móveis revirados e a ausência da sua esposa. Sem alteração nenhuma, Nick responde aos questionamentos da polícia, entretanto, ele mente na maioria das respostas. Ele conta uma versão e revela outra para o leitor, mas não diz qual é “a verdade”. Seu álibi para a hora do sumiço de Amy é escondido a sete chaves. Portanto, é melhor manter o pé atrás com Nick.

Já os capítulos de Amy são narrativas do passado, escritas no seu diário desde o primeiro encontro entre os dois até a véspera do acontecimento. Acompanhamos uma mulher amável, perfeccionista, frustrada, contudo, disposta a salvar seu casamento da indiferença e mudanças do marido. Percebemos quatro personagens em cada narrativa – a Amy do diário, a Amy apresentada por Nick, o Nick do diário e o Nick narrador dos acontecimentos do presente.

O que é real? O que é mentira? Além desse jogo de intrigas, a discussão persistente é sobre o casamento. O que faz um casamento ser duradora e feliz? O que faz uma pessoa continuar ao seu lado de maneira satisfatória ao longo dos anos? Essas questões foram as que mais mexeram comigo, pois a gente se pergunta e deseja o tempo todo numa relação amarosa que o outro sinta e deseja as mesmas coisas que a gente. Quase esquecemos, porém, que o sujeito pelo qual nos apaixonamos é apenas um indivíduo com desejos e vontades narcisísticas, como todos nós.

Quanto mais eu lia, mas me sentia envolvida pela discussão e o mistério. À primeira vista, Amy parece uma mulher fraca, mas resoluta, tentando colocar panos quentes nos problemas, enquanto Nick é um sujeito pouco expressivo e difícil de dialogar. A questão dos pais, o famoso Complexo de Édipo, está presente na relação familiar de ambos. Eles têm questões mal resolvidas com seus progenitores, problemas de certa forma levados para o lar conjugal e um dos motivos da corrosão do relacionamento.

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A construção da vida glamourosa até a decadência dos personagens são muito bem apresentados para nossa época. Nick era crítico de cinema de uma revista em Nova York, ao passo que Amy escrevia testes para revistas na mesma cidade. Os dois trabalhavam com veículos impressos, mas com difusão dos meios de comunicação na internet eles perderam o emprego. Os pais de Amy, entretanto, eram ricos e criaram a filha com tudo do bom e do melhor, além de lhe juntarem uma boa quantia. Sua fortuna era vinda da coleção de livros Amy Exemplar – o motivo da tradução do título em português -, que acompanhava a vida de uma menina dos seis aos 30 anos de idade, seguindo exatamente o crescimento da Amy real.

A personagem do livro era como um alter ego da filha idealizada pelos pais de Amy. Mais um ponto para Amy tratar em terapia. Da mesma forma, Nick possui um relacionamento raivoso com o pai, por seu desprezo familiar durante a adolescência dos filhos. A única pessoa que Nick confiava era a sua irmã gêmea Margot, a intimidade entre os dois era invejada por Amy, segundo o próprio Nick. Bem, com sutiliza e bastante criatividade,  a escritora Gillian Flynn molda narrativas diferentes para Nick e Amy,  nos prendendo nesse emaranhado de suposições  e reflexões.

O livro é dividido em três parte marcadas por reviravoltas impressionantes. Conforme a história prossegue, as narrativas continuam mostrando o ponto de vista de cada um. Durante toda a leitura, o suspense e a história são ótimos, entretanto, o que realmente acorrenta o leitor é essa possibilidade de saber a perspectiva de ambos para cada desenlace. É surpreendente perceber o quanto nos enganamos sobre o outro, mesmo conhecendo suas reações e defeitos. O ser humano consegue ser surpreendente e, por vezes, difícil de interpretar.

A mensagem mais forte aos meus olhos foi sobre o casamento ser uma atuação entre duas pessoas. Os sujeitos se conhecem, se apaixonam e começam a atuar para agradar o outro. Conforme a nossa atuação dá resultado continuamos a investir na performance, no entanto, um hora uma das partes se cansa e sai do papel. O problema é que o companheiro de palco não é avisado anteriormente sobre a mudança de cena e, se ele não souber improvisar, o script se dissolve.

A gente não ama o outro, nós amamos o imaginário do outro. É engraçado pensar como a gente escolhe uma pessoa e acredita que ela é o objeto da nossa felicidade, enquanto o outro não fez nada além de existir. A gente constrói todos os motivos para amar alguém de forma isolada, o outro apenas aceita ou não.

Esse jogo de papéis é muito bem moldado por Flynn. Acabei a leitura exausta. O livro é pura psicanálise sem nem mencionar a palavra. Há muitas outras questões envolvidas, como a influência e sensacionalismo da mídia, sem falar no trabalho raso da polícia, mas não vale destrinchar o livro e acabar com algumas surpresas. O final é arrebatador e condizente com toda a narrativa, não há brechas para frustrações.

Trechos:

Eu estava fingindo, como muitas vezes fazia, fingindo ter uma personalidade. Não consigo evitar, foi o que sempre fiz: assim como algumas mulheres trocam de estilo regularmente, eu troco de personalidade. Qual persona parece boa, qual é cobiçada, qual está em voga? Acho que a maioria das pessoas faz isso, apenas não admite, ou se acomoda em um persona porque é preguiçosa ou burra demais para mudar. (2013, p. 244)

Os americanos gostam do que é fácil, e é fácil gostar de mulheres grávidas – elas são como patinhos, coelhinhos ou cachorros. Ainda assim, me choca que essas paquidermes moralistas e encantadas consigo mesmas recebam um tratamento tão especial. Como se fosse muito difícil abrir as pernas e deixar um homem ejacular entre elas. (2013, p. 281)

Publicado por Letícia Alassë

Jornalista pesquisadora sobre comunicação, cultura, linguística e psicanálise. Mestranda de Jornalismo Internacional na Universidade Paris VIII, na França. Nascida no Rio de Janeiro, apaixonada por explorar o mundo tanto geograficamente quando diante da tela. Mora atualmente na Cidade Luz.

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